segunda-feira, 8 de março de 2010

O Falso Mentiroso - Resenha

O Falso Mentiroso
Por Maria Cristina A. Biagio
O falso mentiroso, de Silviano Santiago, foi publicado no Rio de Janeiro, em 2004, pela Editora Rocco, contendo 222 páginas. Entre as obras do autor,  estão os romances Uma história de família, Viagem ao México e De cócoras, Em Liberdade e Stella Manhattan, as coletâneas de ensaio Uma literatura nos trópicos e Nas malhas da letra e o livro de contos Keith Jarrett no Blue Note.
Silviano Santiago é escritor e crítico literário. Mora no Rio de Janeiro e por três vezes recebeu o Prêmio Jabuti nas categorias de romance e conto.
O Falso Mentiroso é um livro curioso, a começar pelo título, que provoca o leitor, pode-se dizer até que o texto começa pelo título, que é nada mais é do que um paradoxo. Ao procurar a contracapa o leitor se depara com os dizeres:

“O falso mentiroso: paradoxo atribuído a Euclides de Mileto (século IV a.C.), cuja forma mais simples é: se alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira e, por isso, novamente falsa.” (Enciclopédia Mirador)

A citação reforça o lado paradoxal do romance, que logo no início traz as palavras do próprio narrador “Posso estar mentindo. Posso estar dizendo a verdade”. Tem-se a nítida sensação de estar ouvindo o próprio Silviano Santiago, mas é Samuel quem fala. Seria Samuel uma máscara do próprio Silviano Santiago? A leitura da biografia do autor, mostra que ele perdeu sua mãe quando tinha um ano e meio de idade; morte no parto do irmão mais novo, e, esse fato é um dado fundamental na sua biografia (como o próprio autor já declarou em entrevistas).
Quando Samuel fala da ausência de pais, de não ter sido abraçado, amamentado e ninado por sua mãe, de não ter aprendido a sofejar uma única canção de ninar aos seus próprios filhos, se é que eram seus, pois ele não tem certeza, é com grande pesar que vai narrando os fatos. Samuel não é filho de Donana e, talvez, nem de Eucanaã, foi comprado na maternidade, portanto ele não é filho natural nem adotivo, quem é Samuel? Que máscaras ele usa?
Poder-se dizer que ele é um ser fragmentado, há um desdobramento do eu, ao mesmo tempo singular, plural (HUTCHEON, 1991, p. 207), mas pode-se ir mais longe, pode-se dizer que esse ser fragmentado, carrega em si o complexo de Édipo.
Freud, em seus estudos sobre o inconsciente, traça um paralelo entre a história de Édipo Rei, da antiga Grécia e a formação da psique humana. No modelo de Édipo, criado por Freud, a busca do prazer é representada pelo desejo com relação à mãe e a sua negação é representa pela figura do pai, que detentor do poder, tem a capacidade de afastar a criança da mãe, o que, inevitavelmente, acabaria por gerar uma disputa entre os dois.
No livro, observa-se que a relação entre o complexo de Édipo e o narrador se dá na maneira como ele se relaciona com as questões que envolvem a sexualidade. A carência sexual e psicológica é estendida ao campo da linguagem através de uma linguagem pornográfica, principalmente, quando narra as aventuras amorosas do pai, exagerando no grotesco e no ridículo da situação.
Ao falar sobre o relacionamento do pai com Tereza e da forma como tudo acabou, Samuel comenta que Tereza tinha feito cinco abortos e isso a livraria de ser sua mãe, mas ao mesmo tempo, questiona o porquê dos presentes recebidos e do tratamento a ele dispensado. Teria sido ele trocado por uma quitinete na Lapa? Teria sido Donana tão compreensiva e compassiva com a amante do marido? Quando o leitor acredita que o narrador vai finalmente revelar que encontrou sua verdadeira mãe, ele mais uma vez se livra da responsabilidade e prossegue a narrativa, mudando de assunto. Observa-se, no entanto, que a ausência de ascendência familiar sólida é o que dá um certo ar de suspense à narrativa e através desse suspense, encontramos o pretexto para as suas reflexões. Outras possíveis mães surgiriam.
Outra característica bastante intensa do narrador é o fato de ele ser um observador da vida dos familiares e, mais assiduamente, da vida do pai. Era Samuel uma testemunha silenciosa, que a tudo fiscalizava, escutava as conversas telefônicas e armazenava todas as informações. Quando descobre as mentiras do pai falso, como ele o tratava, uma figura digna de um anti-herói, devido a sua esperteza, assiste ao seu fracasso e tenta desesperadamente superá-lo, o que acontece, pois ele alcança o sucesso e a estabilidade financeira, apesar de ser um artista falsário.
Ao mencionar a doença do pai e a questão do suicídio, coloca-nos diante da fala do pai:
“que filho porra nenhuma! Um bastardo que a gente encontrou na rua. À míngua de água, comida e carinho. Um bastardo que cultua a figura de Alexander Fleming não merece a mínima consideração do fabricante de camisinhas-de-vênus. Ao inferno com ele!” (SANTIAGO, 2004, p. 129)

Diante disso, a constatação “ e ainda me perguntam por que eu sou triste!”
Com relação à Donana, o curioso é que o narrador não quer saber qual é o seu papel nessa história, seria doloroso demais saber que ela também era uma mentira, a memória de sua professora no jogo das máscaras, permaneceria intacta.
Com relação ao título do livro, o próprio narrador vai explicando sua história, “Sou um falso mentiroso. A arquitetura era mentira piedosa para o papai. A advocacia, para ela. Duas mentiras, duas falsas afirmações de vida. Nem arquiteto nem advogado. Uma terceira escolha galopava sem montaria no lombo das duas mentiras”.
Ao final do livro, constata-se o jogo de máscaras e “a ironia parece ser um grande mecanismo retórico para despertar a consciência do leitor para esta dramatização”. (HUTCHEON, 1989, p. 47) Silviano Santiago utilizando a estratégia da metanarrativa, surpreende pelo final inesperado. O resto, como diria o próprio Samuel, é pa-ra-rá, pa-ra-rá, pa-ra-rá.

Referências Bibliográficas:
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: Ensinamento das formas de arte do século xx. Tradução Tereza L. Peres. Lisboa: Edições 70, 1985.
SANTIAGO, SILVIANO. O Falso Mentiroso. Rio de Janeiro, : Rocco, 2004.

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