terça-feira, 9 de maio de 2023

Herança (um conto de Alê Motta) Meu avô é um velho inconveniente que faz todas as perguntas que não devia fazer nos eventos familiares. Além de fazer perguntas medonhas, ele me encara e comenta que eu engordei, afirma que minha amiga é sapatão, que eu nunca vou arrumar emprego com o curso que faço na universidade, mas tudo bem, porque sou um fracassado igual ao meu pai e fala isso dando aquela risadinha sarcástica de quem está determinado a se meter. Meu avô consegue azedar qualquer reunião familiar. Ele começa discussão, ofende. Zomba, magoa. A todos. Ele tem olhinhos azuis, cabelo todo branquinho, é gorducho e caminha pulando. Quem olha de longe vê um velho fofo. Quem convive de perto está louco pra ir ao seu funeral. Ele maltrata a vovó. Chama de lesada, define as roupas que ela deve usar e onde pode ir. Se e quando pode ir. E com quem. Joga o prato no chão se a comida não está do jeito que ele quer. Ela não reage. Ele espancava os filhos quando pequenos – meu pai e meus tios. E agora que os filhos estão adultos, sempre se dirige a eles com sarcasmos ou palavrões. Ele nunca nos abraçou. Me chama de Breno e meu nome é Bruno. A Carla ele apelidou de Saco de Banha!, ela é minha prima complicada com o controle de peso. Já tentou se matar, é depressiva. Minha tia fica arrasada. Meus primos gêmeos ele chama de "os dois" e outro primo, o Gil, de "o menino". A minha prima Cássia, eita!, essa ele ignora. Tem tatuagens e piercings, para ele não existe. Ela diz – Olá avô! Ele vira a cara. Estamos na delegacia. Meus pais, tios, tias, primos, primas e vovó. Depois desse ridículo e desprezível almoço de natal. Vovó é a única que chora e repete Tadinho, tadinho. Meu avô nunca mais escarnecerá de ninguém. Foi esfaqueado, enquanto dormia, após o almoço, com a faca nova de cortar o peru. Durante o almoço ele ofendeu, zombou, e xingou a todos. Impressionante sua capacidade de humilhar, menosprezar e detonar. Meu avô era brilhante na maldade. Somos muitos e somos todos suspeitos, mas o delegado já ganhou uma graninha e semana que vem todos ficarão sabendo da tentativa frustrada de assalto. E comentarão, impresionados, da valentia do meu avô, que sozinho no quarto, reagiu. O resultado final foi que, infelizmente, ele não resistiu aos ferimentos na luta feroz, corpo a corpo com o marginal. A vida seguirá. E a maldade da minha família, que era só do velho, agora está em todos nós. Sobre a autora: Alê Motta nasceu em São Fidélis, interior do estado do Rio de Janeiro. É arquiteta formada pela UFRJ. Participou da antologia 14 novos autores brasileiros, organizada pela escritora Adriana Lisboa. É autora de Interrompidos (Editora Reformatório, 2017). 

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